quarta-feira, maio 25, 2011

Flor do deserto

Autor: Waris Dirie
Género:
Biografia

Idioma: Português
Editora: Edições ASA
Páginas: 200
Preço: € 14
ISBN:  978-9-89-230952-1 
Título original: Desert flower




Avaliação: **** (bom)

Flor do Deserto levanta muitas questões e toca em pontos sensíveis: a liberdade de escolha individual e a liberdade de pôr e dispor do próprio corpo.

A nossa narradora é a autora do livro, Waris Dirie, que nos conta como passou dos desertos da Somália para o mundo da moda internacional, depois de uma infância dura na vastidão do deserto e de uma adolescência a trabalhar em casa de parentes, sem qualquer remuneração em troca.


Com uma linguagem directa, Flor do Deserto tem a sua mais-valia na descrição crua, ao pôr a nu uma cultura e religião muito diferentes da nossa realidade.

Waris (que significa flor do deserto) é uma mulher admirável, de espírito hercúleo, que passou privações e torturas aterrorizadoras, tendo sido a mais marcante a excisão (mutilação genital feminina - MGF) a que foi sujeita aos cinco anos, um ritual há muito estabelecido na Somália e outros países africanos de ideologia muçulmana. Consiste em cortar o clítoris ou em remover totalmente o mesmo e os lábios vaginais, cosendo-se em seguida os tecidos que sobram; fica apenas um minúsculo orifício pelo qual a mulher urina e menstrua.


Neste caso, a mulher "costurada" só é "aberta" para o marido (as estimativas da UNICEF  indicam que existem no mundo entre 70 a 140 milhões de mulheres às quais foi removido o clitóris, a maior parte sem qualquer esterilização e recorrendo a lâminas, pedaços de vidro e até à dentada; tudo vale para “preparar” uma menina para ser uma mulher). O pretexto? Assegurar a castidade e a preservação da virgindade até ao casamento, melhorar a fertilidade da mulher. Consequência? Elimina o prazer sexual feminino.

Quanto a mim, só posso dizer que li tudo isto completamente horrorizada; ainda hoje me custa a acreditar que tantas crianças sejam sujeitas a esta mutilação (muitas morrem em consequência de infecções e hemorragias). Há alguns anos, Waris abandonou as passarelles para se dedicar exclusivamente ao combate contra a MGF.

«É difícil saber o que me teria acontecido se não tivesse sido mutilada. Faz parte de mim, não conheço outra realidade(…) Não sabia o que ia acontecer [a total remoção dos órgãos genitais], mas estava contente porque me ia tornar mulher.»


É esta mentalidade que quer combater, razão pela qual aceitou ser embaixadora da ONU, para tentar erradicar este costume bárbaro. Verdadeiramente deliciosas são as lembranças de Waris, de quando pastoreava cabras no deserto e ajudava a mãe na lida da “tenda”, em pleno deserto. Desde cedo uma personalidade forte, Waris conseguiu sobreviver à conta da astúcia e do desembaraço natos.

Só pelas primeiras 100 páginas, o livro vale a pena. Esta flor é um cacto, de tão resistente.

quarta-feira, maio 18, 2011

Justine ou Os Infortúnios da virtude

Autor: Marquês de Sade
Género: Literatura Erótica
Idioma: Português
Editora: Antígona
Páginas: 354
Preço: € 10
ISBN:  978-9-72-608127-2

Título original:
Justine ou las infortunes de la vertu

Tradução: Manuel João Gomes




Avaliação: **** (bom)


O Marquês de Sade (1740-1814) tem associado ao seu nome um rótulo de libertinagem e devassidão, ao que contribuíram os relatos de espancamento e tortura dos seus numerosos amantes, tanto homens como mulheres. O nobre Donatien-Alphonse escreveu esta história em 15 dias, num verão de 1787, numa temporada na prisão.

O livro começa por nos apresentar às duas figuras principais do livro, as irmãs Juliette e Justine, órfãs de mãe e deixadas pelo pai ao deus-dará depois de um escândalo financeiro. O século é o 18 e estamos na França – não há assistência social, famílias de acolhimento nem subsídios; é cada um por si.

Forçadas a abandonar o abrigo do convento, onde recebiam formação escolar, as raparigas acabam por ser ajudadas por Madame de Buisson, feliz proprietária de um bordel, que deixa bem claro que as raparigas terão de dar o corpo ao manifesto para pagar alojamento e alimentação.

A mais velha, Juliette, aceita, até porque as suas perspectivas de casar são nulas e mendigar pelas ruas não é uma opção; acabará por enriquecer às custas das suas habilidades na alcova.

Já Justine, a nossa protagonista, católica fervorosa, encara a proposta com indignação, jamais encarando a possibilidade de ver a sua virtude manchada. Com meia dúzia de tostões no bolso, faz-se à estrada, convencida de que o seu temperamento honrado lhe abrirá as portas de acesso a um trabalho digno.

«A virtude que tanto alardeais não serve para nada deste mundo e por muito que a exibais ninguém vos dará um copo de água por ela.»

É esta frase que a rapariga ouve da boca do primeiro homem a cuja porta vai bater. E as respostas que seguintes não são muito distintas. Para cúmulo, só lhe aparecem sodomitas e sádicos pela frente, que lhe propõem sempre actos abjectos.

O livro é divertido porque Justine, apesar de bem falante e bem-intencionada, é uma otária e sai de uma para se meter logo em outra ainda pior. Mais: não hesita em desfiar o seu rol de desgraças a quem encontra pela frente, e depois lamenta-se do mundo cão onde veio parar, mas nunca parece aprender.

Ao longo das mais de trezentas páginas, a jovem é sujeita às mais cruéis degradações. Mesmo com fome, não rouba um pão; prefere ganhá-lo dissertando sobre o mal do mundo e o serviço a Deus. O resultado salda-se sempre em sovas.

Longe de ser um livro cruel, é uma lição de moral, num jeito metafórico bem diferente das fábulas de Ésopo e La Fontaine, onde não faltam umas frases na mouche – Sade era, acima de tudo, um homem inteligente com uma grande visão social.

Era também um ateu ferrenho com um enorme desprezo pela Igreja como instituição; era contra todas as regras éticas e morais e defendia que o príncipio maior a defender era o prazer, em função do qual o Homem devia viver e condicionar as suas acções. Um filme que o retratou bem foi o excelente quills - as penas do desejo.

Quanto ao livro, é uma leitura diferente que vale a pena.

sexta-feira, maio 06, 2011

Escrever - memórias de um ofício

Autor: Stephen King
Género: Autobiografia / Escrita criativa
Idioma: Português
Editora: Temas e Debates
Páginas: 256
Preço: € 18
ISBN:  978-9-72-759459-7
Título original: On writing: a memoir of the craft


Avaliação: ***** (muito bom)

«Se não tem tempo para ler, não tem tempo nem ferramentas para escrever.»

Neste livro, dividido em duas partes, King desvenda-nos os segredos e ferramentas da sua arte. A primeira parte é uma autobiografia, com enfoque no seu percurso literário, a segunda parte um guia do escritor.

Começamos com um passeio pelas memórias do mestre do terror: infância, adolescência, primeiros passos no mundo editorial, sucesso mundial, experiência de vida. Longe de ser uma leitura monótona, ajuda-nos a perceber como as situações passadas ajudaram o fazer de King o escritor que ele é, não sendo necessário ter uma vida fora do comum para escrever sobre o sobrenatural e o bizarro.

A segunda metade é um guia para o aspirante a escritor. Stephen King começa por dizer, sem peias, que não vê com bons olhos os workshops de escrita criativa e cursos derivados.

Para ele, se alguém não tiver o que é necessário para escrever - «the package» -, dificilmente o adquirirá em cursos. A chave é amar a leitura, ler muito (mesmo muito muito muito) e saber o que se quer fazer com as ideias que se tem a fervilhar no cocuruto. Os conhecimentos de gramática, léxico e sintaxe ajudam, mas tudo se resume a duas máximas:

1) ler muito
2) escrever muito

King descreve pormenorizadamente o seu processo de criação e incentiva os aspirantes a seguirem-no ou a adaptarem-no a si. Dá dicas e recomenda alguns livros que o influenciaram ou a que ele tira o chapeau pela qualidade e/ou técnica.

Stephen King, goste-se ou não da sua obra, é uma referência para todos os que gostariam de escrever dentro do género; em Escrever - memórias de um ofício chega até ao leitor facilmente, numa narrativa simples, directa e, acima de tudo,  útil.